Professora americana desvenda as incongruências do livro que colocou uma pá de cal na produção de quadrinhos americanos (e sepultou editoras como a E.C. Comics).
O Universo HQ postou uma matéria interessantíssima: Carol L. Tilley, pesquisadora e professora da University of Illinois Graduate School of Library and Information Science, resolveu pesquisar os arquivos de Fredric Wertham (o psiquiatra responsável pelo livro A Sedução do Inocente) que estão disponibilizados para o público desde 2010 com a intenção de analisar a interação e troca de mensagens que o psiquiatra teve com bibliotecários e bibliotecárias e descobriu muito mais.
Num artigo publicado no Information & Culture: A Journal of History, Tilley esclarece que Wertham modificou os dados obtidos em seus estudos para escrever o livro. Entre as modificações estão a idade das crianças, a omissão de fatores mitigantes e a distorção de citações.
Por exemplo, no livro o Wertham diz que recebeu um grande volume de cartas, enviadas por bibliotecários, reclamando dos quadrinhos, mas a pesquisadora encontrou no máximo umas 12. Ele também disse que atendeu milhares de jovens problemáticos na clínica dele, mas foram na verdade algumas centenas.
Outros problemas estão nas descrições de pacientes do Wertham. Tinha um garoto de 7 anos que passou a ter pesadelos depois que leu o Besouro Azul (o original), sobre um herói que se transformava em um Besouro e alegou que a história era um “Kafka para crianças”. O problema é que a pesqusiadora não encontrou as anotações sobre o garoto, na qual o Wertham dizia que o menino não se lembrava do conteúdo dos sonhos. Além disso, o Besouro Azul não se transformava num inseto como acontece em A Metamorfose, do Kafka.
Interessante também foram as informações sobre Batman e Robin. Wertham dizia que eles representavam os desejos de dois homossexuais vivendo juntos, e atribiui a citação a um jovem de 13 anos, em liberdade temporária, recebendo tratamento psiquiátrico por ter abusado sexualmente de outro menino, que se imaginava como o “Robin”, e que queria ter relações com o “Batman”. Mas o que Tilley encontrou nos documentos era bem diferente: o garoto preferia ler Superman, Crime Does Not Pay (famosa revista de HQs policiais) e histórias de guerra, muito mais do que Batman. Além disso, ele omitiu que o garoto havia sido atacado sexualmente anteriormente.
Em alguns casos, Wertham menciona jovens que ele não tratou, como a garota Dorothy, de 13 anos, que era paciente da Dra. Hilde Mosse, modificou palavras, datas, citações e muitos outros fatos, embora algumas citações tenham sido transcritas na íntegra, para comprovar as suas teorias.
Bem, uma coisa que é interessante comentar é que atualmente o rigor na produção acadêmica é profundamente maior do que já foi em épocas passadas. Então não é incomum encontrar falhas metodológicas e distorções em pesquisas antigas como esta do Wertham. Outro exemplo, bem diferente, é de Wade Davis, pesquisador que foi um dos únicos a tentar se aprofundar na extensa cultura Zumbi no Haiti. Suas pesquisas deram origem aos livros A Serpente e o Arco-Íris (que já está fora de catálogo no Brasil e que comentamos no Podcast do MDM sobre Zumbis) e um que pelo que eu sei nunca saiu aqui, Passage of Darkness: The Ethnobiology of the Haitian Zombie. Embora por muito tempo estas pesquisas tenham servido de base para o assunto (e até hoje servem), atualmente há diversas críticas aos resultados da pesquisa, principalmente com relação à metodologia.
É claro que isso não jusfiticava alterar dados para provar sua tese, como Wertham fez. Mas explica por que estas descobertas só aconteceram agora: Por que a metodologia foi se tornando mais rigorosa (por exemplo, atualmente é imprescindível como parte da metodologia científica a revisão dos pares, ou seja, que pesquisadores independentes tenham acesso aos métodos e a pesquisa propriamente dita para poder verificar se as descobertas da pesquisa se sustentam).
Mas acho que isso serve também como uma boa lição da velha falácia do apelo à autoridade: não é por que uma pessoa é especialista em um assunto, que ela não irá errar (afinal, somos todos humanos). E também não é por que a pessoa é um especialista que ela não se deixará levar pela insegurança e preferirá forçar a perspectiva ao invés de fazer a “boa ciência”. Além de servir também para mostrar o que hoje parece óbvio: que a tese dele era rasa (principalmente se considerarmos os dados da época, em que que 90% das crianças e 80% dos adolescentes nos Estados Unidos liam quadrinhos, ou seja; é óbvio que a maior parte dos jovens problemáticos eram leitores de HQs).
Eu ia terminar com uma sessão de imagens bizarras da Era de Prata para sacanear, mas o post ficou extenso, além do mais, ia mudar totalmente o foco do post. Mas não deixem de dar uma uma olhada aqui para conferir algumas pérolas da época, que nos fazem pelo menos entender por que alguém resolveu ver problemas nos quadrinhos para as crianças.