Um dos álbuns mais elogiados do ano passado, falando sobre sexo pago. E eu me sinto invadindo o espaço de outro MdM falando dele… Mal aí, Change!
É possível que sequer você tenha ouvido falar deste álbum – um material de um quadrinista underground, sem muita tradição de publicação no Brasil (é seu segundo trabalho a sair por aqui), e versando sobre um tema pra lá de polêmico (ainda) que é a prostituição. Poxa, era um prato cheio para cair no limbo do esquecimento da nossa moralzinha judaico-cristã (que pode não ser a sua moral, mas predomina neste país e, sim senhor, te afeta). Sorte nossa que o material é tão bom, mas tão bom, que a crítica se viu obrigada a falar sobre, a chamar atenção. Claro, há de se considerar também que vivemos um momento em que, a despeito da qualidade técnico-literária, mulheres tem se sentido à vontade para ler 50 tons de cinza no ônibus sem ser um escândalo. Um tanto menos discreto, foi o que fiz com Pagando por Sexo.
No álbum, Chester Brown relata sua própria experiência de, ao longo de quatorze anos, mais ou menos (de 1996 até 2010) abandonar todos (ou quase) os devaneios do amor romântico e da monogamia e se entregar ao mundo do sexo pago. Não, por “se entregar ao mundo” não entenda como devassidão,/b>, muito pelo contrário: Chester adota a prostituição como uma saída racional e economicamente viável de se satisfazer sexualmente – tão racional e econômica que compreende mesmo intervalos de tempo fixos para os encontros.
Assim, Pagando por Sexo traz uma coletânea dos encontros que Chester teve com as mais diferentes prostitutas (são 23, salvo engano), suas histórias por detrás do trabalho na prostituição, em paralelo com as reflexões e discussões do próprio Brown com seus amigos e parentes acerca da discriminalização da profissão e da falácia do amor romântico, cheio de possessividade e neurose.
É impressionante como, a despeito de seu traço simples – até meio seco – Chester consegue passar tantas coisas, bem como descrever tão bem as prostitutas. De todas as profissionais que passam pelo álbum, todas elas são fisicamente diferentes, de alguma forma, umas das outras. O mais interessante é que essa diferença é retratada única e exclusivamente através do desenho dos corpos, já que Chester nunca desenha os rostos das acompanhantes. Veja você: num único álbum, Chester diferenciou mais as mulheres do que um Jim Lee(xo) ou Ed Benes conseguiram fazer na carreira inteira!
Mas, como tudo na vida, Pagando por Sexo não é um material perfeito. Como publicação, o álbum contém dois momentos bastante distintos: os quadrinhos (227 páginas) e algumas reflexões “teóricas” de Chester, transcritas em prosa com algumas ilustrações (da página 231 até o fim do livro, na 280). É justamente essa porção “teórica” que enfraquece o álbum. Veja bem, a experiência de alguém é a experiência de alguém. A reflexão que este alguém faz sobre a sua experiência, também é válida como a análise de alguém sobre a própria experiência. O problema é quando, baseado exclusivamente no que viveu, esse alguém decida universalizar as conclusões às quais chegou. E é aí que Chester pisa na jaca: os apêndices de seu álbum são tentativas, um tanto constrangedoras até, de universalizar a própria experiência – daí como muitos modelos de pequena escala que são ampliados para abarcar grandes escalas, dá zica.
Tão crítico ao “amor romântico”, Chester não percebe, por exemplo, que é isso que ele espera obter das prostitutas: só isso justifica, por exemplo, que ele defenda uma descriminalização da prostituição, mas não sua regulamentação. Fica claro quando ele chama o sexo pago de “namoro pago”, quando deveria chamar de prestação de serviço. Sim, a prostituição, enquanto trabalho, é uma atividade de prestação de serviço, e pouco se diferencia (veja bem, como PRESTAÇÃO DE SERVIÇO) de outra atividade laboral qualquer, como a de um psicólogo, por exemplo, ou de um médico, um encanador, um dentista, um padre, um lavrador. Todos estes oferecem, à partir de um conhecimento próprio (ora prático, ora técnico) um serviço a outra pessoa, e cobram por isso. O Estado legisla e tributa todas essas atividades, exceto a prostituição, e Chester defende que continue assim. E eu não poderia discordar mais dele, e de achar constrangedora sua “previsão futurística” sobre o utópico mundo de 2080 – quase um devaneio infantil. Quando ele defende a descriminalização da prostituição mas não a sua regulamentação, a meu ver ele parte do ponto de que as prostitutas negociam uma das poucas coisas que o Estado não legisla, ou pelo menos não deveria legislar, que é o amor. Daí toda a construção que ele fizera sobre o caráter cultural (e recente) do amor romântico, bem como a sua nocividade, acaba caindo por terra.
Veja bem, sou um cara e me considero feminista. Concordo e defendo um número grande de bandeiras e causas do movimento feminista, e me situo na ala que defende a discriminalização (que no Brasil já existe) da profissão de prostituta mas também sua regulamentação, inclusive com a ressignificação do crime de lenocínio (o famoso “favorecimento à prostituição”), aproximando-o, enquanto tipificação penal, dos crimes de escravidão, por exemplo, e distanciando-o do favorecimento. Também discordo (e aí concordo com Chester) é que essa regulamentação não deve vir de cima para baixo, de um grupo de burocratas sem envolvimento/conhecimento da realidade objetiva, e não vejo motivo para ver a prostituição como particularmente degradante se a prostituta não a vê assim (e me ofendo com o “ela é prostituta porque não teve escolha”, que acaba objetificando a mulher-prostituta). O problema é Chester construir castelos à partir de uma situação muito particular: certeza absoluta que o panorama da prostituição no Canadá (o autor é de Montreal) está a quilômetros do panorama da prostituição no Brasil, por exemplo, que está há quilômetros da prostituição nas Filipinas, e por aí vai. Claro, isso não invalida toda as “construções teóricas” que ele apresenta, só algumas. Talvez nem invalide, apenas demonstra que é um processo, que ainda está construindo o que pensa sobre o assunto.
Assim como ele fez na parte em quadrinhos – e ficou sensacional.
Pagando por sexo (Paying for it), de Chester Brown. Editora WMF Martins Fontes. 290 páginas, preto e branco. R$ 47,00.
Nota: 8,5