“É da Marvel ou da DC?”, pergunta o incauto capivara umana, digo, leitor…
Não se assuste pessoa se você tiver até visto este livro na livraria e cagado pra ele. Faz parte. Faz parte inclusive por conta dessa capa horrorosa, a mais feia do Brasil, com esse Jonathan Kent ameríndio. Tudo bem. Não passa de uma cópia mal-feita, desavergonhada e não creditada da edição gringa de capa-dura, que trazia trechos de All-Star Superman do grande Frank Quitelly.
Mas eu volto a falar disso depois.
Em Superdeuses, Grant Morrison, o deus do Búguima, propõe algo que, se não é inédito, ao menos quando feito por um dos “papas” da indústria pode trazer resultados muito interessantes: retomar a história das histórias em quadrinhos de super-heróis, e suas implicações na vidinha cotidiana dos pobres mortais que as liam, ou seja, nóis mermo, bruxão!
É assim que o livro se vende, como uma “exploração instigante e provocadora do nosso grande mito moderno: o super-herói”, o que parece muito interessante, certo? E é! A escrita fluída e sagaz de Morrison te abarca de tal forma ao apresentar os impactos do surgimento de gente como o Superman, por exemplo, todas as referências e seu papel como a encarnação de um zeitgeist operário (?) pós-crise de 29. Sim! A consequência direta da criação do personagem, o surgimento de todo um mundo (um “supermundo”) povoado por arquétipos junguianos pós-modernos, atualizados, prontos para os novos tempos, as novas mentalidades.
Tudo isso é interessantíssimo. Pena que acabou sendo escrito por um dos sujeitos que, em paralelo ao gênio da indústria dos quadrinhos que é, também é um dos autores mais orgulhos e egocêntricos do mercado.
Sim, porque o que seria (ou deveria ser) um ensaio sobre o mundo dos quadrinhos de super-heróis enquanto manifestação cultural, rapidamente torna-se uma autobiografia, um “como eu vi e cresci com os quadrinhos de super-heróis e depois entrei neles”, que poderia até ser interessante, se eu tivesse pagado para ler isso. Veja bem, Morrison é foda. Uma de minhas histórias favoritas de super-heróis foi escrita por ele, e há várias outras memoráveis que também contaram com seus roteiros, mas um ensaio crítico sobre um gênero inteiro de produção cultural é beeeeeem diferente de uma autobiografia perpassada por esse gênero. Quando você percebe que o morrisonismo se sobrepõe aos “superdeuses” do título, fica difícil seguir a leitura das mais de quatrocentas e setenta páginas do livro – isso sem falar quando começam as viagens de droga, e Morrison descreve suas brilhantemente cortísticas teorias, absurdamente lisérgicas, sobre o mundo dos quadrinhos. Ao mesmo tempo, em determinado momento, chega a ser hilário (mas trágico também) o esforço do careca em diminuir a contribuição de seu conterrâneo Alan Moore à indústria – “Moore e seus repetitivos roteiros de forma fixa”. Hilário porque, uma vez que Morrison introduz, historicamente, a figura de Moore, a todo tempo ele terá de, obrigatoriamente, fazer referência aos trabalhos do Barbudo, mesmo que seja criticando-os. Mesmo assim, essa insistência, essa necessidade de retomar serve, no fim, para reafirmar o vulto do Mago, e a pretensa iconoclastia acaba sendo uma forma mal disfarçada, com despeito, de idolatria.
Com isso não quero dizer que Superdeuses é um livro de todo ruim, porque não é. É um livro mal vendido (não, ele não é um ensaio sobre “o significado de ser humano na Era dos Super-Heróis”, como alardeia a capa) e que fica enfadonho em alguns momentos, como muitos por aí. Também é bastante autorreferente e auto-indulgente para com seu autor, o que certamente incomoda.
O que é de todo ruim na publicação é o vergonhoso trabalho gráfico da editora Seoman/Cultrix. Santa mãe de deus! E pensar que eu achava que ninguém poderia descer mais fundo no poço que a Madras e seu Os super-heróis e a filosofia, que usou uma única imagem (a Liga da Justiça do desenho animado do Bruce Timm) com os mais diversos recortes. Em Superdeuses, não bastasse a capa horripilante (e não creditada), ainda somos brindados com uma imagem horrível, de uma história com o Thor, repetida à exaustão nas separações de capítulo e, o pior, completamente pixelada! Isso sem contar de outras imagens internas, ora pequenas demais, ora escuras demais, ora as duas coisas (como a página de Crise de Identidade à página 436). Dá a impressão de que o editor mandou o pedido da parte gráfica a um designer, o orçamento veio caro demais e ele falou: “Ah, isso aí meu sobrinho de 15 anos faz de graça!” e o resultado taí.
Entretanto, há um ponto a se elogiar, que é a tradução do nosso amigãozão Érico Assis. Ok, tem uma derrapada ou outra (à página 435, por exemplo, Morrison se refere ao Homem Borracha, mas o Assis parece que não sacou e traduziu Plastic Man ao pé da letra), mas faz muita diferença ler uma tradução feita por alguém que entende do riscado, mais uma vez diferente do Super-Heróis e a Filosofia da Madras, que transformou Reino do Amanhã em Reino dos Céus e outras lambanças. Enfim, a tradução não trunca a leitura e praticamente não oferece aqueles sobressaltos de uns materiais mais mequetrefes que tem por aí.
Agora, todo esse descuido editorial, tanto da Seoman quanto da Madras, talvez sejam sintomáticos. Veja bem, Superdeuses não é exatamente um livro barato (60 pila o impresso e 42 o digital), mas é, sem sombra de dúvidas, um material de nicho. Mas que nicho é esse? A falta de cuidado me dá a impressão que é um nicho relaxado, pouco exigente, tão ávido por ler as coisas que deseja que topa lê-las de qualquer jeito, sejam bem editadas ou não, bem acabadas ou não. Um nicho feliz só por ter acesso ao material.
O que é uma vergonha. Oras, estamos em 2013, e pra quem encara o inglês sossegado, vale muito, mas muito mais a pena embolsar a versão gringa em capa dura, que acaba saindo inclusive mais barato – e ainda mostra que esse nicho não é tão mendigo assim.
Superdeuses (Supergods) de Grant Morrison (tradução de Érico Assis). Editora Seoman, 496 páginas, preto e branco. R$ 59,90.
Nota: 5,5