“Enviei minha alma através do invisivel para soletrar alguma carta deste pós vida, mas de repente ela voltou para mim e respondeu: Eu mesma sou o Céu e o Inferno.”
Oscar Wilde
Existe um pequeno diálogo logo no início de As Aventuras de Pi que eu creio que seja um ponto chave para o público compreender tudo que virá pela frente na trama. É quando o escritor anônimo que veio ouvir o protagonista Piscine – sim, esse é o seu nome – o questiona sobre o parentesco com um dos personagens citados nas histórias da sua vida.
- Mamaji me disse que era amigo da sua família. Ele não falou que era seu parente.
- Ele era o melhor amigo do meu pai. Eu o considero meu tio.
A partir daí começa um puta dum ensaio sobre a subjetividade de uma forma que raras obras já fizeram antes. O que é a verdade afinal?
É o que o escritor que vai ouvir as histórias de Pi tenciona descobrir quando Mamaji diz a ele que o protagonista vai lhe contar uma história que vai fazê-lo acreditar em Deus. Após alguma relutância, Pi topa o desafio e começa a narrar sua infância no zoológico da família na Índia, seus conflitos de personalidade com o pai, quando conheceu quase todas as religiões existentes na busca de algo que nem ele sabia o que era.
O ponto de virada ocorre quando todos estão se mudando para o Canadá com zoológico e tudo após a revolução na Índia e o navio afunda em pleno Oceano Pacífico durante uma terrível tempestade na Fossa das Marianas, lugar mais profundo dos mares. Restam num bote os únicos sobreviventes: o próprio Pi, um orangotango, uma zebra com a perna quebrada, uma hiena e um tigre chamado Richard Parker.
Agora eu vou pedir desculpas caso alguém se incomode com isso, só que não dá pra falar do filme do Ang Lee baseado no livro do Yann Martel sem citar alguém extremamente importante no processo: Moacyr Scliar. Martel supostamente baseou seu livro A Vida de Pi numa resenha negativa que leu sobre Max e os Felinos de autoria de Scliar. Aparentemente julgando ser uma “obra menor”, ele decidiu “consertar” o que estava “errado” e elaborou sua própria obra, baseado nas idéias do escritor brasileiro. Obviamente ele não sabia que Scliar era um autor conceituadíssimo aqui no Brasil e isso virou quase escândalo internacional.
O próprio Moacyr Scliar – falecido em 2011 – contou numa entrevista porque desistiu do processo de plágio após uma conversa com Martel. Veja aqui. Em Max e os Felinos acompanhamos um jovem alemão que, após determinados conflitos com o pai, foge da ameaça nazista em seu país para o Brasil em um navio que transporta um zoológico. Devido a um golpe contra uma seguradora o navio é afundado restando como únicos sobreviventes num barco à deriva no Oceano Atlântico, Max e um Jaguar.
Em ambos os livros, também, quando os dois personagens finalmente se salvam existe uma reviravolta na narrativa utilizada para surpreender o leitor e dar-lha uma outra visão da história que acabou de ler, que é exatamente o mesmo tanto em Max quanto em Pi. O que é diferente então? A Metáfora. O mecanismo e a forma são as mesmas, o conteúdo é diferente. Max encontra felinos em grande parte de sua vida, mesmo antes do naufrágio quando está na Alemanha e depois, já em terras brasileiras, cada hora um representa uma ameaça diferente. Enquanto que Pi convive com Richard Parker só durante seu longo período perdido no Pacífico e depois nunca mais o vê. E cada um dos felinos que surge em cada um dos livros tem um significado diferente.
Esquivando-se um pouco da polêmica agora, o tema central da história de Pi é bem nítido desde o princípio: Religião. A ligação do Homem com Deus e as idiossincrasias dessa relação. E não é porque sou brasileiro ou fã do Scliar que vou fugir de declarar que essa discussão foi levantada de forma brilhante e muito inspirada aqui. Tanto que a tradução brasileira do título do longa metragem mais uma vez deu mancada na falta de sutileza. Pra ficar num exemplo, seria a mesma coisa que chamar A Vida de Brian do Monty Phyton de As Aventuras de Brian.
Os atores que interpretam o protagonista na juventude e na maturidade (respectivamente Suraj Sharma e Irrfan Khan) estão sensacionais, você sente que principalmente o primeiro se doa muito em cena para o personagem. A direção do Ang Lee nessa adaptação encontra também os seus melhores momentos como cineasta. Por mais que reconheça as virtudes de Lee, eu tenho um certo problema com a narrativa dele desde que comecei a acompanhar seu trabalho em O Tigre e o Dragão. Pra mim muita coisa dos seus filmes passa uma percepção avulsa do contexto. Ele parece mais interessado em deixar uma marca de estilo próprio do que em amarrar toda a beleza visual que é capaz de transmitir num conceito coerente e termina dando mais significado as partes do que ao todo. Isso pode ser percebido na sua versão do Hulk também.
Posto isso, eu tenho que enfatizar: As Aventuras de Pi é o tipo de projeto que é o veículo perfeito pro exercício de estilo do Ang Lee. Quando no final do longa metragem a mesma história é contada de outra forma, somos levados a entender que entre o começo da viagem (quando os outros animais estavam à bordo) e o final dela (com a chegada naquela ilha misteriosa) passamos mais de uma hora a sós no oceano da imaginação com Pi e Richard Parker.
E é justamente nessa parte que Ang Lee se esbalda, produzindo com todo seu talento algumas das cenas mais líricas de toda sua carreira, auxiliado por uma fantástica fotografia e efeitos especiais de primeira linha. A computação gráfica utilizada pra criar o tigre talvez seja o melhor efeito do tipo que eu já vi na minha vida, ainda mais considerando que o CGI é algo que particularmente não me agrada muito.
Como ressalva, Lee modifica um pouco o final do livro de Martel, propositalmente dando uma ênfase muito menor quando a segunda história é contada com o objetivo claro de não quebrar a experiência de imersão do público proporcionada até então pelo filme. A questão é que, se por um lado ele realmente é bem sucedido nessa intenção, por outro esvaziou a discussão primordial do longa metragem e correu o risco de sinalizar um entendimento equivocado pra algumas pessoas.
Vi muita gente por aí achando que o tal desafio de Pi de fazer o escritor acreditar em Deus era só uma camuflagem para um ser traumatizado que usava Deus como muleta de sobrevivência emocional e eu também fiquei com essa impressão quando as luzes do cinema se acenderam… entretanto a trama não fecha direito com essa conclusão.
Como falei As Aventuras de Pi é sobre Religião, a ligação do Homem com Deus e suas formas de Comunicação… e não sobre a existência ou não de Deus… Essa sutil diferença deve ser sempre percebida. Religiões usam símbolos desde sempre pra reforçar conceitos e para maior assimilação dos mesmos. E um bom observador notará que nenhum fato de uma das histórias do Pi contradiz a outra história.
E da mesma forma que a Religião, “A Arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade” já dizia Pablo Picasso. Isso me aliviou quando percebi que não estava “devendo” nada a Moacyr Scliar por ter achado As Aventuras de Pi uma estupenda história sobre o espírito humano. Pelo contrário. Scliar está presente nessa obra mais do que eu poderia imaginar. Talvez – na pior das hipóteses - ele fosse o Pi ali no barco, e Yann Martel fosse Richard Parker. No fim o que importa é que todos – Scliar, Martel, Lee e seus atores e equipe – colaboraram cada um pouquinho pra gerarem uma obra espetacular e um dos três filmes mais inteligentes que eu tive o prazer de assistir no Cinema em 2012.
Nota: 10,0.