Notas esparsas sobre uma discussão muito interessante!
Como foi jabánizado por aqui, na última quinta-feira, dia 18, eu, Nikki Nixon (da revista Mundo dos Super Heróis) e Marcelo Miranda (do Jornal O Tempo) nos encontramos na Gibiteca Municipal Antonio Gobbo para discutirmos a relação entre mídia e quadrinhos. Entre uma pergunta e outra sobre HQ’s favoritas e as dificuldades (e facilidades) de se cobrir os quadrinhos em cada um dos veículos ali representados, uma pergunta teve um grande impacto: o que impede que as histórias em quadrinhos sejam vistas com seriedade no Brasil?
Cara, você pode até discordar, dizer que não, mas o fato é que, nesta terra brasilis, quadrinho ainda é coisa de criança – é revistinha pra cá, gibizinho pra lá e coisa e tal. Na melhor das hipóteses, as HQ’s são vistas como uma forma de expressão menor, pura e exclusivamente voltada para o entretenimento, incapaz de qualquer reflexão (ou coisa que o valha) mais profunda sobre o mundo. O que é, de início, uma inverdade e, nos fins, uma injustiça, uma mutilação.
Afinal de contas: os quadrinhos são ou não são a “nona arte”? (não me pergunte qual a ordem que as outras sete ocupam)
Ao contrário do que o uso do ordinal possa indicar (primeira arte, segunda arte, blábláblá nona arte), não se trata de uma hierarquização: tente falar com um dramaturgo que as artes plásticas são “mais” arte do que o teatro para você ver o que acontece – e mesmo assim, segundo o manifesto de Ricciotto Canudo (santa Wikipédia!) a pintura e a escultura ocupam posições “superiores” ao teatro (respectivamente 3ª e 4ª, estando o teatro em 5º).
O problema da HQ é, primeiro, a necessidade sempre repetida de ter de se afirmar enquanto arte e não mero entretenimento. Veja bem, em qualquer acepção que tomarmos “arte” (mesmo a concepção grega de “arte” como “técnica”) os quadrinhos cumprirão os requisitos necessários para serem vistos como tal e suficientemente distante das outras formas artísticas para não ser simplesmente considerado como um braço da arte X ou Y (sim, para afirmar categoricamente que HQ NÃO É literatura, por exemplo).
Talvez o grande problema de “estabelecimento” das HQ’s como arte (“coisa séria” e, portanto, detentora de uma linguagem própria) diz do conteúdo e não da forma. Ainda que temas mais “adultos”; (entendam como quiserem) já sejam uma realidade nas HQ’s no Brasil há uns trinta anos pelo menos, ainda se mostram num volume pouco insipiente diante da produção de materiais meramente voltados para o entretenimento – e aqui existe uma volta importante: há uma noção (americana, quase, mas muito brasileira sem dúvida) que entende o entretenimento como algo menor, feito para crianças e desocupados: bonito mesmo é ser sério, ou pelo menos parecer sério.
Digo isso para fazer link a uma outra reflexão, talvez até uma viagem mítica, mas nós, do Novo Mundo, sempre carregamos essa pecha de não sermos sérios. De sermos nativos das terras da permissividade, da falta de compromisso, lugar de segunda. Pois daí se resulta numa formação reativa básica: sermos ainda mais realista que o rei, para nos provarmos dignos da monarquia. Em outras palavras: para mostrar que podemos ser tão sérios quanto qualquer nativo do Velho Mundo, nós nos esforçamos para sermos ainda mais sérios do que eles. Não há espaço para permissividade alguma (saudável ou não): somos sérios, muito sérios, nos revestimos da seriedade encarnada.
Daí que o entretenimento acaba sendo matéria proibida. Não se pode rir, porque somos sérios. Se você é letrado o suficiente para cursar uma faculdade (portanto, um cara sério), não deve se ocupar de nada que não seja sério ou, pior, que não tenha cara de sério. Nossa formação reativa é tão poderosa que, lendo a Divina Comédia de Dante com ilustrações de Doré, o sujeito pode se tornar alvo de olhares tortos (Onde já se viu? Com barba na cara e lendo livro com figurinhas!).
Essa nossa ultrasseriedade (mentira, é sisudez mesmo) entra em choque direto com o grosso dos quadrinhos que recebemos oriundos dos norte-americanos, como bem lembrou o Marciano, nosso parceiro da Escola Studio A4. Os gringos e seus super-heróis são entretenimento. Não são coisa de gente séria. Não podem ser coisa de gente séria. Mesmo que seja Watchmen discutindo a Guerra Fria, ou V de Vingança criticando o autoritarismo de um governo totalitário… Daí, com essa mentalidade, jogamos no mesmo balaio, como se fossem exatamente a mesma coisa, um Pagando por Sexo, e um número aleatório de Spawn, um Asterios Polyp e a Turma da Mônica Jovem #50. Quando basta ler qualquer um deles para se ter a clara concepção de que não são a mesma coisa!
Agora, será que é possível mudar isso? Bem, é preciso crer que sim. Como é que é o problema. O mercado de HQ’s no Brasil tem mostrado alguns sinais de que essa visão, se não está com os dias contados, pelo menos começou a se nublar. O Marcelo Miranda chamou atenção para os quadrinhos de livraria que, bem ou mal, colocam as HQ’s num lugar socialmente reconhecido como nobre (portanto, sério. Tem coisa mais séria que livraria? Só caixinha de Maizena…), com direito lá ao seu espacinho. Além disso, o crescente número de publicações para adultos, também elas voltadas às livrarias, tende a colaborar com a quebra desse paradigma negativo, mas na real mesmo, só o tempo dirá.
Ah, antes d’eu passar a régua, uma ressalva antes do voo das pedras: não há problema nenhum no entretenimento, na diversão. Diante de toda seriedade da vida, das contas a pagar, das responsabilidades a arcar, o entretenimento ocupa um espaço privilegiado diante de uma expectativa de vida saudável. Ou seja, diversão é importante justamente porque é diversão, e ponto. Sob esse prisma, Turma da Mônica Jovem é um gibi tão bom quanto Watchmen ou Notas sobre Gaza, por exemplo. Basta que não se leve tão a sério…