Essa semana, o quadrinista Gus Morais (dono de um dos melhores blog de quadrinhos da blogosfera de HQs) lançou Privilégio e outras histórias. Se você não acha isso nada demais, está convidado a ler algumas tirinhas do cara e saber porque estava tão ansioso por esse álbum.
Você já pode adquirir – ou saber mais da HQ – clicando aqui. Há um teaser rolando no youtube. Fiz uma entrevista com o cara a respeito. Segue aí:
Seus quadrinhos seguem uma linha mais de HQ-poema. Alguns deles me lembraram autores argentinos (como Pablo Kioskerman), mas queria saber exatamente quais seriam suas maiores influências?
Gus: Todo quadrinho que faço nasce de um texto. A partir do texto, vou pensando em imagens que tornem aquela narrativa mais interessante e instigante – e o quadrinho vai nascendo. Após um tempo realizando histórias com personagens e acontecimentos numa linha narrativa mais tradicional, me vi escrevendo textos mais livres e percebi que havia, ali, um certo espaço pra uma “poesia visual”. Com o tempo, fui descobrindo outros autores que já fazem isso há muito mais tempo e que se tornaram verdadeiras referências pra mim: um deles é o argentino Kioskerman e outro é o Rafael Sica.
Mas esta descoberta de um quadrinho-poesia pra mim ainda é recente e acho que existe muito espaço pra experimentação. Se fosse apontar referências mais diretas para o meu trabalho, indicaria contistas que sempre apreciei ler: Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, Fitzgerald. Gosto da estrutura do conto e acredito que ela cabe muito bem para a leitura do quadrinho na web. Na literatura gosto também muito do trabalho do Lourenço Mutarelli, do Ítalo Calvino, da Hilda Hilst. No cinema, gosto muito da produção do Cassavetes e do Kim Ki Duk. Mas não sei dizer, exatamente, o que meu trabalho tem de cada uma dessas referências – acredito que da mistura de tudo isso com algumas decisões e ideias que tenho acabe surgindo algo diferenciado.
A idéia de tirar as HQs da tela do computador e colocar no papel sempre é alvo de controvérsias. Há quem diga que não tem porque pagar por algo que está na net e quem até prefira ter um livro. Mesmo contando com tirinhas inéditas, o que te fez pensar que esse álbum é interessante pra quem conhece ou não sei trabalho?
Gus: Desde quando comecei a desenhar quadrinhos pra web em 2007 eu pensava em publicar algo que pudesse funcionar tanto na web quanto no papel. Há diferenças na experiência de leitura nos dois suportes e, no geral, é sempre um pouco delicado trabalhar dentro da tensão entre os dois. Mas é uma tensão que gosto de vivenciar no meu trabalho. Pensar para os dois meios é uma forma, também, de se preparar para um futuro onde os suportes são cada vez mais variados. Meu quadrinho pode ser lido na tablet, na tela do pc, no celular; e, agora, no papel.
Acredito que um livro ainda possui poderes que o digital não tem. E que um dia, talvez, terá: quando tablets tiverem telas tão orgânicas quanto um papel e puderem passar um tempo desconectados. Mas por ora, há vantagens que prezo muito que me fazem, ainda, ser um consumidor de muito material impresso: ler um livro é uma relação entre o objeto, o pensamento do autor, e você mesmo. Não há notificações, não há botões de curtir esperando para ser apertados, nem gente comentando em volta em voz alta o que achou mal você acabou de terminar a leitura. É uma relação mais íntima. Permite tempo para respiro, para que se faça reflexões mais profundas e se tire as próprias conclusões sem ruídos atrapalhando. Um livro também você pode emprestar para um amigo, apresentar essa ou aquela história que considera que tem a ver com ele, e enfim… a materialidade do livro e a forma como a leitura se dá nele permite uma experiência diferenciada, mesmo que o conteúdo já tenha sido lido algum tempo atrás.
Sobre a validade de se comprar um livro cujo conteúdo já se encontra na web, acho que há alguns pontos interessantes. Quando decidi fazer quadrinhos, sabia que queria contar histórias cujos temas me parecessem relevantes. Histórias que envelheçam bem, que não fossem efêmeras apesar da rapidez da rede. Gosto de criar hqs com possibilidades abertas de interpretação e este tipo de abordagem permite, sempre, que o leitor retorne mais tarde para o material e o interprete com um novo olhar. Em “Refúgio da Razão”, por exemplo, há leitores que vêem a história como crítica a igreja e leitores religiosos que vêem como crítica a razão. Talvez seja os dois ao mesmo tempo. Outras histórias, como “Privilégios”, podem até emocionar alguém que nunca teve um caso grave de doença na família, mas certamente fazem muito mais sentido para quem já passou por essa situação. E, independente disso, não deixa de ser uma história sobre laços familiares. Acredito que ao aprofundarmos no íntimo se chega no universal – e nesse sentido, a história mais pessoal do livro pode ser lida de forma muito pessoal por qualquer leitor. Então acredito, realmente, que “Privilégios e Outras Histórias” é um livro que possui histórias que merecem ser relidas; talvez, até, num ambiente mais reservado, com mais calma e silêncio.
Privilégios e Outras Histórias é, também, a tentativa de um modelo diferente de se fazer quadrinhos. É um livro que foi, na verdade, se construindo aos poucos e que só agora ganhou capa e um tratamento diferenciado. O que fiz nestes dois anos foi, realmente, compartilhar essa produção do livro publicamente: e há muita honestidade nele no sentido de eu incluir na edição impressa, inclusive, histórias de quando meu traço estava muito ruim ou quadrinhos em estilos mais escrachados que não voltei a fazer depois. É um mapeamento e um coroamento de um processo que foi aberto para o leitor durante 1 ano e meio. E como modelo de produção para um cara que pretende viver fazendo quadrinhos como eu, a ideia é que este processo se repita: daqui 1 ano e meio pretendo lançar um novo volume contendo as histórias que serão feitas desde hoje até o fim de 2013. O meu traço está mudando, talvez surjam histórias com pegadas diferentes, mas a ideia continua: o livro vai sendo criado com o acompanhamento do público, na forma de pequenos contos independentes e uma hora eles são agrupados como retrato de uma produção. O meu desejo é que, com o tempo, a venda de uma coletânea banque a impressão da próxima e assim, aos poucos, o trabalho cresça e se torne mais auto-sustentável.
No mais, me resta apenas ressaltar que há, ainda, muita coisa nova interessante a se ver no livro. As histórias foram ordenadas de tal forma – e nisto devo creditar meu colega jornalista e pesquisador de quadrinhos, Caio F. Paes, responsável pela organização das histórias – que o leitor faz um passeio de um universo macro para o micro: começamos em histórias que olham para o mundo e vamos afunilando para histórias que tratam de relações pessoais até fecharmos nos quadrinhos mais nitidamente autorais, com temáticas pessoais. É um processo, também, de ir criando lentamente empatia com o leitor e aproximando-o de questões mais íntimas. Essa fluidez de leitura ficou mais interessante no livro, por exemplo, do que na leitura desordenada que se faz na web. As 34 histórias foram agrupadas em quatro grupos: e cada um deles é apresentado com uma ilustração inédita que sugere, desde o início, o clima das histórias que virão.
Há ainda um texto de apresentação que é minha resposta, dois anos após os problemas com a doença de meu pai, aos problemas e questões que estavam mal resolvidas no período em que criei a história. A minha retomada dos quadrinhos e do blog se deu a partir da necessidade de extravazar esta tensões e agora, a apresentação desta produção no papel acaba fechando, de certa maneira, todo este período negro. Ao receber o livro da gráfica, lê-lo por completo e fecha-lo, tive a certeza de que uma etapa se encerrou também e que novas histórias sobre novos temas serão possíveis.
E não posso esquecer, claro, de falar das 4 histórias inéditas que compõem 17 páginas do livro. São histórias sobre memória, sonho e crítica (ou melhor, desencanto) social. Quem gostou das histórias publicadas no site até agora, provavelmente gostará destas hqs inéditas.
E por fim, uma última vantagem: quem comprar o livro na Loja Virtual pode escolher a opção para recebê-lo com dedicatória. Este tratamento único e especial é mais uma das vantagens que o livro possui sobre a web.
É isso, pessoal! Pra quem quer conhecer mais do Gus, recomendo as tiras Autoretrato, MetaFora e a Revêstrés.
Bugman é gente que entrevista