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A gente lemos: Diomedes, a trilogia do acidente

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A Cia das Letras reeditou os álbuns mais famosos e, ao mesmo tempo, mais esgotados de Lourenço Mutarelli. É claro que eu fui conferir, né?

Acho difícil alguém se auto denominar “fã de quadrinhos” e nunca ter ouvido falar de Lourenço Mutarelli. Principalmente depois do sucesso e do cartaz obtido por O Cheiro do Ralo, adaptação para cinema (com a bunda da Paula Braun e uns outros atores de menor expressão) de seu livro homônimo, que acabou chamando atenção para a produção do autor.

Fato é que, até o início da noite de ontem, eu nunca tinha lido nada de quadrinhos Muta. Isso porque sua obra mais famosa, mais comentada por aí, estava esgotada há um tempão. Sim, eu estou falando da trilogia (em quatro partes) estrelada pelo detetive Diomedes (O dobro de cinco, O Rei do Ponto e A soma de Tudo). Aquela mesma que ia virar filme.

Enfim, a Trilogia do Acidente narra, em quatro partes, três casos em que o delegado aposentado e perdedor da ativa Diomedes trabalhou. No primeiro deles, O dobro de cinco, um misterioso homem o contrata para localizar o mágico Enigmo, cujo último truque parece ter sido desaparecer sem deixar vestígios. Em O Rei do Ponto, Diomedes acaba envolvido, por força das consequências de sua empreitada anterior, na perigosa caçada a um assassino serial de casais e, por fim, em A soma de Tudo, o detetive é enviado à Portugal num estranho caso de desaparecimento e segredos.

Diomedes, o detetive, é um perdedor de marca maior. Feio, sujo, estranho, leitor do MdM, é incapaz de sobreviver com a aposentadoria que recebe como delegado (se fosse da ativa e trabalhasse em MG, não seria muito diferente), sendo incapaz de realizar o sonho de sua mulher, que é ter um maldito sofá de três lugares. De sua primeira aparição até a última, pra lá de duzentas páginas depois, você só terá um sentimento quanto à sua figura: pena. Diomedes é um sujeitinho digno de pena – e nem tento pelas coisas que a trama mostra acontecerem com sua vida, mas por tudo o que o levou até ali. Claro, essa sensação vai aumentar à medida que se avança na leitura do álbum, chegando ao momento em que o leitor simplesmente acaba desejando logo que ele morra, que pare de ser humilhado, de dar soco em ponta de faca. Esse, na minha opinião, é o principal mérito deste trabalho do Mutarelli, ser o seu protagonista tristemente crível. Você não vai torcer para que ele encontre o maldito Enigmo, ou que resolva os assassinatos, ou encontre Pierino em Portugal, você vai torcer para que ele não tenha uma morte muito fodida (apesar da vida fodida que ele levou).

Quanto ao álbum em si, preciso dizer que a arte do Mutarelli não é a coisa mais digerível do mundo, e se você, como eu, está por demais acostumado com estilos mais, digamos, harmônicos, mais clássicos, haverá de estranhar muito e às vezes até se incomodar com o que vê. O desenho é sujo, por vezes, cheio de detalhes demais, desnecessários, o que, somado à arte-final chapada no preto e branco, feita no pincel, sem muitos meios-tons, às vezes dá uma cara de fanzine com impressão de luxo. Lá pras alturas da terceira história (A Soma de Tudo) em que o autor começa a (muito mal) “camuflar” pessoas e lugares, essa sensação (de fanzine) se agrava, e pelo lado mais pejorativo que se possa usar o termo.

Falando nele, A Soma de Tudo é o ponto fraco do encadernado. Feito em duas partes (por isso a Trilogia do Acidente é composta de quatro números), n’A Soma vê-se claramente um autor meio perdido, tentando levar uma história para além do que ela se presta a ir (o que fica evidente nos longos e verborrágicos diálogos passados em Amadora) e principalmente na solução totalmente deus ex machina que a trama recebe. Entretanto, ainda que seja o ponto mais baixo do álbum, A Soma não chega a ser ruim – sua introdução e a conclusão, com o diálogo de Diomedes e Waldir, seu único amigo (e que me parece muito uma homenagem ao parceirinho mirim do Spirit, o Ébano), sobre o nada e a magia do mundo são excelentes, o que estraga são os entretantos gastos para passar de um a outro.

Noutra pronta, O Rei do Ponto é minha história favorita com o personagem. Nela, o status de resto, de lixo que é Diomedes está explícito nos tons mais crus e evidentes, e quando ele chuta o plano para pegar o assassino às favas em troca de uma efêmera vitória pessoal, a gente do lado de cá acaba sem saber se ri ou se chora de sua (parca) satisfação.

Enfim, Diomedes – A Trilogia do Acidente é um álbum que vale sim a pena ter na estante. Seja pelo fato de ser diferente do que estamos acostumados, seja por ser um trabalho já clássico de um autor pouco lido, seja por, em sua diferença, ter sido muito bem executado – você precisa tê-lo na sua estante, sob a pena de não ser, de vera, um verdadeiro leitor de quadrinhos.

Ah, e antes que eu me esqueça, é um trabalho da Cia das Letras, mais um belo trabalho da editora, e se eu tiver de continuar elogiando-os, vou começar a cobrar um jabá. Apesar de que, desta vez, deixo um puxão do orelha: o álbum é graficamente lindo, um projeto muito bem pensado e executado mas, peralá! Faltou um prefaciozinho, hein Companhia? Aquela apresentada no autor e na relevância do trabalho (já que é uma republicação) caia bem…

Diomedes – A Trilogia do Acidente, de Lourenço Mutarelli. Editora Cia das Letras (Quadrinhos na Cia), 432 páginas, R$59,90.

Nota: 8



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